Ana Paula Cortes Rodrigues é
educadora há 34 anos. Desde novembro de 2011, coordena a Educação de
Jovens e Adultos (EJA), órgão da secretaria municipal de Educação de
Nova Friburgo. Fez cursos de aperfeiçoamento em Madri e na Califórnia e
nos últimos dez anos tem se dedicado especificamente a práticas
pedagógicas e didáticas desta educação.
"São inúmeras as barreiras que
precisam ser vencidas para que cada um desses alunos volte a estudar. Há
muita insegurança! Só com carinho e cuidado nós conseguimos gerar um
ambiente que os acolha como são”, diz a educadora.
Empolgada com seu trabalho, os
olhos de Ana Paula brilham quando fala sobre as vitórias alcançadas pelo
EJA, o que deixa transparecer neste Ponto de Vista. Confira.
Ana Paula Cortes Rodrigues
Quando faço a relação entre analfabetos e educados, penso no mundo
em que vivo e trabalho. Desde que comecei a trabalhar com alfabetização
de adultos, passei a aprender todos os dias a viver melhor e a enxergar
situações que, até então, nunca tinha percebido de forma tão nítida e,
às vezes, até cruel.
Basta nos debruçarmos sobre alguns números. A taxa de
analfabetismo de pessoas com 15 anos ou de mais idade é de 9,6% , ou
seja, 14 milhões só no estado do Rio e 52.336 milhões no país. Realidade
brasileira: somos o oitavo país com maior número de analfabetos e dos
chamados "analfabetos funcionais”.
Quando relaciono o grande número de pessoas nesta situação de
analfabetismo no nosso município, sou obrigada a me confrontar com a
qualidade da educação didática e curricular oferecida aos nossos
cidadãos. O que mais me impressiona é a educação que os cidadãos
excluídos da sociedade adquiriram.
Os "ditos” analfabetos são de grande importância quando prestam
serviço às famílias, às empresas privadas, aos órgãos públicos, ao nosso
dia a dia, enfim. Nem notamos que são quase analfabetos. Afinal,
conseguem "ler” uma lista de tarefas, deixar "escrito” o que está
faltando na geladeira e até "assinar” seu nome. Na verdade, porém, vivem
sem serem notados.
Instrumentalizar essas pessoas com competências e habilidades
acadêmicas tem sido meu grande desafio e meta. Estas pessoas tão
educadas, gentis, amorosas e companheiras nos dão, cotidianamente, uma
grande lição de vida. Em seu mundo peculiar e intrigante, vivem uma
exclusão velada.
Em novembro de 2010, quando cheguei à EJA, procurei conhecer e
visitar cada unidade escolar. Na época, eram 20 e a quantidade de alunos
matriculados era muito baixa.
No ano seguinte, devido aos efeitos da catástrofe climática que se
abateu sobre nossa cidade, o desafio foi maior ainda. Além de todas as
situações citadas, Nova Friburgo estava de luto. Dolorida, sem
perspectivas e chorosa. Envolvi-me, então, no desafio de motivar essas
pessoas não alfabetizadas ou cujos estudos foram interrompidos pelo
destino, por vezes cruel com muitos, a voltar aos bancos escolares.
O que, ressalte-se, não havia acontecido por vontade própria e sim
pelas contingências da vida: distorção entre a idade e a série,
desmotivação pura e simples, a necessidade de trabalhar na roça ou em
casas de família, gravidez na adolescência e por aí vai.
Conheci e comecei a trabalhar de perto com essas pessoas que
tinham perdido tudo, literalmente tudo. Vidas arruinadas e uma
autoestima extremamente baixa. Naquele ano, trabalhei duramente. Fui a
todos os lugares da sociedade para convidar os moradores a retornarem às
escolas.
Aparelhei pedagogicamente a EJA do município através do método
denominado "Proposta Curricular Vivências e Experiências na Educação de
Jovens e Adultos” e o implantei em 13 unidades escolares. Resultado:
terminamos o ano com 480 alunos.
Mas, para tanto, foi e continua sendo preciso preparar
corretamente os professores, porque todos os alunos têm histórias
difíceis. Ninguém chega ao EJA porque quer. Essa é uma dívida social que
temos, uma dívida de toda a sociedade.
Em 2012, porém, nosso trabalho - meu e, sobretudo, dos professores
que lidam diretamente com os alunos - começou a ser reconhecido,
aprovado pela sociedade, com a divulgação dos compromissos sociais que
assumimos. Em 2013, terminamos o ano letivo com 820 alunos, embora 1.100
estudantes tenham passado por nossas escolas naquele ano. Os que
desistiram representam uma sazonalidade comum na EJA.
Quando penso nas histórias dos alunos vivenciadas por mim, não sei
descrever a felicidade que invade o meu coração. Um dia, ao chegar a
uma unidade escolar, uma aluna me chamou: "Ô, lorinha” (é assim que,
carinhosamente, eles me tratam). Eu me virei e respondi: "Oi, como
vai?”. Nesse momento, ela me puxou pelo braço, pegou algumas placas e
leu: "cozinha”, "banheiro”, "recepção”, "almoxarifado”, "sala número 1”,
"amor”, "ponto”. Eu chorei, pois ela tinha chegado à escola para
aprender a ler onde estava escrita a palavra "ponto”. Na empresa em que
trabalhava, havia um "ponto” que era batido com um cartão e ela sempre
precisava de ajuda, pois não conseguia sequer ler o que estava escrito
acima do aparelho. Nos demos um abraço tão bom, tão gratificante que,
por mim, estaria, até agora, grudada nessa moça. Parabéns também àqueles
que chegaram para ler a bíblia, tirar a carteira de motorista, melhorar
a situação na empresa em que trabalha... São muitas as histórias lindas
vividas por eles, só por quererem educação.
Para mim, a educação é, paradoxalmente, o que de mais antigo e
mais atual que a humanidade tem em seu poder. Quando seguramos a mão de
um adulto para formar palavras, olhando em seus olhos, vemos todo o
cansaço do seu dia de trabalho, pois muitos vêm da lavoura e despertam
às 4h da manhã para trabalhar. Outros vêm de uma jornada de 8 horas de
expediente em vários segmentos da sociedade.
Mas, percebemos em todos eles, sem exceção, a grande emoção de ter
voltado à escola por sua própria vontade, pois logo deixarão para trás
toda a exclusão sofrida. São guerreiros estes brasileiros. É preciso
reconhecer e enaltecer seu sacrifício e seu imenso esforço em busca do
conhecimento. Não, não é nada fácil trabalhar o dia todo e, ainda assim,
ir para a escola à noite.
Sempre falo com esses alunos sobre a importância de cada um deles
para mim e para nossa cidade. Procuro não deixar que eles se esqueçam de
que é pensando, lendo e escrevendo que contamos nossas histórias.
Valorizo - e como valorizo! - as histórias de vida desses adultos
sedentos de informação. Rompo com eles cada fronteira e me emociono com a
vitória alcançada. Tenho certeza de que estas pessoas que deixaram o
analfabetismo para trás podem alçar voos muito mais altos do que um dia
imaginaram. Acredito que muitas delas lerão este artigo sem necessidade
de pedir que alguém faça isso por elas. E me sinto imensamente feliz,
pois cada uma delas representa um número a menos na triste estatística
do analfabetismo no país.
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